«Imaginem esta palavra phase, escripta assim: fase. Não nos parece uma palavra, parece-nos um esqueleto (...) Affligimo-nos extraordinariamente, quando pensamos que haveriamos de ser obrigados a escrever assim!»
Alexandre Fontes, A Questão Orthographica, Lisboa, 1910, p. 9.

domingo, fevereiro 05, 2012

Para quem estiver interessado em saber mais sobre a razão deste e de outros acordos ortográficos (e reformas) aconselho a ler com atenção.
Entrevista a Carolina Michaëlis de Vasconcelos de 1911 (Republicada nos «Cadernos do Centenário» de O Primeiro de Janeiro, em 1968).
I - Existe ou não, ortografia portuguesa, oficial e uniforme?
A Em Portugal não há, nem houve nunca, ortografia oficial, uniforme. Só ortografias variadas, mais ou menos sensatamente regradas pelo costume e exemplo de bons autores, ou mais ou menos inçadas de erros, contradições, dislates, caprichos e idiossincrasias pessoais. Esse estado anormal foi tomando proporções de verdadeira calamidade nos últimos decénios do século passado; desde que romanistas que ex-ofício estudaram cientìficamente a literatura e a língua nacional - glotólogos, gramáticos, lexicógrafos, etimologistas como F. A. Coelho, J. Leite de Vasconcelos, o já falecido Vasconcelos Abreu, Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, Júlio Moreira, Epifânio Dias, Cândido de Figueiredo - começaram a expurgar a escrita de defeitos inveterados, regularizando-a e simplificando-a pouco a pouco metòdicamente, processo que levou uns a adoptar algumas das emendas e inovações, rejeitando aquelas que menos lhes agradavam, e outros a complicar a sua, cada vez mais, por espírito de oposição ou tendências conservadoras, com exajeros pretensamente etimológicos. Houve e há escritores que na mesma estrofe de um poema, na mesma página de um romance nos apresentam formas híbridas e contraditórias, meio reformadas ou inteiramente reformadas, como mytho e rythmo; melancólico e eccho; aflito e fructo; próximo e proprio; sería e Maria; Quiz e mês; allucinante e captivante; outominal e insónia. Uma confusão magna!
II - Seria conveniente que a ortografia fosse oficialmente regularizada e simplificada?
  Conveniente e urgente, tanto do ponto de vista científico, como no estético, e, sobretudo, no pedagógico.
Num país atrasadíssimo quanto à instrução e educação, em que quatro milhões estão à espera dos benefícios da luz espiritual, o que importa é facilitar o ensino da leitura e escrita; acabar com todas as complicações desnecessárias; eliminar todos os artifícios eruditos; abreviar a aprendizagem de sorte que os professores ganhem tempo para realmente fertilizarem as almas com noções sólidas de saber e as boas doutrinas cívicas da solidariedade social, do pacifismo e do altruísmo. Por que (será preciso lembrá-lo?) o ensino elementar da leitura escrita não é fim, mas apenas meio, indispensável para o desenvolvimento da faculdade de pensar, raciocinar, julgar, protestar, e emendar o que encontramos de imperfeito e obnóxio no nosso caminho: faculdades, sem as quais não pode haver verdadeira liberdade.

Quanto aos estrangeiros, também lucrarão com reforma. A enfadonha anarquia ortográfica tornou até hoje pouco apetecido o estudo do português, já em si muito mais espinhoso do que o das outras línguas neo-latinas, por causa das subtilezas da sua pronúncia e da sua morfologia. De ciência certa sei, por quanto tempo a falta de regras seguras sobre recta pronúncia e escrita correcta, e a falta de boas edições de textos impediu por completo, ou embaraçou inùtilmente, a publicação de manuscritos importantes e de estudos, aliás notáveis, relativos à admirável língua de Camões.

Com relação à estética e à ética, bastará perguntar, se a ordem, a disciplina é, ou não, mais bela do que a desordem e a anarquia? A coerência preferível à incoerência? A simplicidade superior a enfeites e arrebiques supérfluos? Se é verdade, ou não, que as deficiência gráficas do português lhe darão ares de inculto; em especial, se o compararmos com outras línguas? A ortografia francesa é incomparàvelmente mais complicada e mais defeituosa do que a portuguesa; mas pelo menos está (como a inglesa e a alemã) frisada com rigor; tem sistema pelo qual todos se regulam. A castelhana e a italiana, pelo contrário. - Os idiomas, portanto, que são mais ìntimamente aparentados com o português - possuem há mais de um século ortografias excelentes, simplificadas racionalmente pelas respectivas Academias.

Equiparar a nossa a essas duas, seguindo mutatis mutandis os mesmos princípios que nelas deram óptimo resultado, regularizar e simplificar, baseando-nos na história cientìficamente estudada do vocabulário nacional - eis o que convém fazer

III - Qual é a causa das anomalias da escrita portuguesa?
Causadora das anomalias que deturpam a escrita portuguesa é (se abstrairmos das dificuldades resultantes da complicada fonologia da língua, com seus sons nasais, ditongos puros e nasais, cinco ee, quatro aa, três oo de valor ora aberto, ora fechado, ora reduzido) a tendência etimológica, erudita, artificial, conservadora - em oposição aberta à natural, popular e progressiva tendência fonética das verdadeiras ortografias, como transcrição dos sons realmente proferidos na pronúncia normal das classes cultas.
Tentarei explicar em poucas palavras de onde provêm, històricamente.

A principal fonte da língua portuguesa é o latim, como todos sabem. Não o latim literário. O latim vulgar, tal como pronunciavam no território lusitano já alijado de certas demasias atávicas ou aristocráticas. Os numerosíssimos vocábulos que constituíam o léxico primitivo dos Luso-Romanos passaram por evoluções sucessivas que, quanto à forma, as modificaram mais ou menos segundo as leis naturais, uma das quais é a do mínimo esforço. Sobrepostas a esta larga e espessa camada popular, que constitui a parte principal, verdadeiramente nacional e modelar da língua, há (além de vocábulos de origem germânica e arábica, etc.) diversas camadas de palavras, tiradas pouco a pouco por especialistas do léxico literário greco-latino, em pelo menos três épocas diversas: Idade Média, época do Renascimento, e tempos modernos. Termos técnicos, científicos, e termos poéticos altissonantes; mas também termos triviais; novos, em muitíssimos casos, e em outros casos idênticos aos que já existiam alterados no núcleo popular, p. ex. palácio ao par de paço; legítimo ao par de lídimo. Palavras divergentes, na terminologia dos romanistas.

Nas palavras populares, herdadas de origem evolutiva, houve sempre e há em regra, ortografia fonética, quer elas se afastem sensìvelmente dos padrões originais, quer não se afastem nada ou quase nada em virtude da sua estrutura singela (rosa, casa; mês a mês). Escreve-se o que se profere, tão perfeita ou imperfeitamente como o admitem os vinte e cinco caracteres do alfabeto também herdado.

Nos primeiros monumentos artísticos da literatura - nas cantigas de amor e de escarnho dos trovadores (de 1200 a 1350) em que mal há vocábulos eruditos (apenas alguns provençalismos e galeguismos) não há, por isso mesmo (no códice membranacio da Ajuda) senão grafias fonéticas como ome, oge, aver, sono, dano, santo, pronto, meter, falar, calar, nacer, crecer, decer. Quanto a u medial há todavia oscilações; provàvelmente por haver oscilações na pronúncia.

Das palavras eruditas, extraídas do dicionário latino e do helénico, não alteradas na boca do vulgo quanto ao sentido, nem quanto à forma, ou apenas levemente aportuguesadas, de índole conservativa, essas entraram, quase estacionárias, com todas as letras dos originais na prosa de notários, eclesiásticos, arqueólogos, historiadores e especialistas (do tempo de D. Dinis em diante), e também nos versos dos poetas áulicos do século XV. Mesmo com letras que em Portugal nunca tiveram função primitivamente sua, e com grupos de letras que não se encontram em dicções herdadas, a não ser abusivamente. Nelas é que figuram os sinais exóticos yy th ph rh gh; muitos hh; os grupos mn gm gn ct pt güe gëe; pp bb gg cq, e outras consoantes dobradas, supérfluas. Mesmo em bastantes das que desceram ao domínio do vulgo, sendo assimiladas às de feições populares na pronúncia (p. ex. pela eliminação de c antes de consoante e ensurdecimento das vogais átonas), a grafia conservou-se inalterada, p. ex. em víctima, victória, tractar, práctica, satisfação.

A par desses termos, de introdução artificial mas antiga, há muitos outros mais modernos, de significado mais erudito, em que p. ex. a pronúncia alfabética dos grupos de consoantes, não toleradas no património verdadeiramente nacional, se tornou facultativa, v. g. em significado, consignar, diccionário, occidente, espectáculo, respectivo, técnica, facto, secção, equidade, equivaler, bilingue. E finalmente há uma camada de vocábulos, de introdução recente e sentido científico tão restrito que nunca serão familiares à maioria dos que falam, em que por hora é praxe geral proferir todas as letras, consoantes e vogais, com os seus valores alfabéticos: aerhemotoxia, glyptognosia, etc. etc.

Pois bem: o costume de encontrar símbolos exóticos (ph rh y) e letras supérfluas em dicções relativas a ciências e artes, empregadas de preferência pelos mais ilustres da nação, levou todos quantos tinham pretensões de cultos - e onde está escritor que as não tenha? - não só a conservar cuidadosamente esses vestígios de origens nobres, mas também a reintroduzir símbolos exóticos e letras supérfluas em dições vulgares, de onde sempre estiveram banidos, durante séculos de vida literária. P. ex. em somno, damno; signal, dicto, fructo; escripto; sancto, pronpto, poncto; descer; nascer; sysne, lagryma; golphinho; exgottar; exforço; sexto; extrangeiro; crescer, nascer; sciente.

Em algumas palavras alteraram mesmo a pronúncia, segundo o tipo latino; ora sensatamente como em menos, menor, feno, pena (em vez de mêos, mêor, fêo, pêa), magno (para evitar confusão com mano), ora inùtilmente como em digno.

Por falsa analogia letras mudas entraram mesmo em palavras onde elas não têm razão alguma de figurar, v. g. em thesoura (por causa de thesouro?), ensignar (por causa do alatinado signal); occeano, como se tivesse relações de parentesco com occaso, occidente, eivando-se assim a parte vernácula do idioma com formas fantasiosas, como theudo, mauthendo, Santhiago e a parte alatinada e helenizada com barbarismos, como ethymologia, lythographia, photografia, physyognomia, philosophia; philharmonica, dymnastia, dymnastica (por causa de gymnastica).

Caturrices como cognoscer por conhecer, quomo por como, ochlos por olhos, hacte por até, ipso por isso - obras do benemérito antiquário André de Resende - não vingaram felizmente. Não tão pouco a proposta de se substituir é aberto por æ!

Tudo isso - repito - com o pretexto de conservar vestígios visíveis de ilustres prosápias, ou conforme é uso dizer «para sugerir etimologias». Por mera ostentação, por pedantismo, por espírito de reacção; ou em virtude da preocupação mórbida que a queda de um h, a substituição de um y por i possa dissimular a origem de uma palavra!

Como se um escasso milhão de portugueses que lê e escreve fosse capaz de analisar, interpretar e historiar as evoluções e origens de homem, hoje, hontem (!), bocca, melhor do que as de ora, onra, falar, filosofia.

Quanto a erros e irregularidades provêem em grande parte, evidentemente, da pouca sabedoria filológica dos próprios autores, que não tinham (até há muito pouco) meios de se informar ràpidamente. Em parte da ignorância dos escribas. Os medievais estavam costumados a transladar e redigir documentos em latim bárbaro; e os do tempo dos humanistas a copiar epístolas cesaronianas, poemas vergilianos, em estilo clássico.

Depois da invensão civilizadora de Guttenberg muitos arcaísmos e pedantismos provieram da intervenção de oficiais de tipografias e de correctores, que julgando-se habilitados, não podendo alterar a bel prazer o estilo dos textos que compunham e corrigiam, lhes retocavam pelo menos a ortografia. Nem sempre exemplar, já o disse, e piamente o creio.

Nem todas as imprensas dispunham de artistas habilitados, e os preceitos da Mesa Censória não permitiam (salvo erro) que o próprio autor lesse provas e alterasse os dizeres de manuscritos aprovados.

Lembro que logo nos alvores da arte de imprimir, o conde de Alcoutim advertia o impressor Valentim de Morávia que as obras saídas dos seus prelos seriam melhores se não confiasse tanto nos seus oficiais - sentença que confirmará quem leu na edição príncipe a História de Vespasiano ou qualquer outra das obras, que devemos a esse impressor.

Quanto à introdução de vocábulos correctamente alatinados e helenizados, tenho-a, em si, em conta de obra meritória; obra de poetas e escritores exímios, impulsionados pelo louvável empenho de enriquecer e enobrecer a língua e altear o nível da cultura pátria com elementos da civilização da Antiguidade. Só Luís de Camões contribuiu com mais de um cento. Com respeito à grafia, lamento, isso, sim, que não se resolvessem logo, decididamente, a tirar aos neologismos que patrocinavam as caudas roçagantes e enfeitos excessivos, assemelhando-os, o mais possível, aos vocábulos antigos, verdadeiramente nacionais. Ainda assim, não vou tão longe como Gonçalves Viana que condena em absoluto as grafias eruditas deles como mera superstição e mero alarde de cultismo, porque me lembro de que ocupando um lugar à parte na economia da linguagem, não era de estranhar que lho quisessem dar também quanto à escrita. E compreender equivale a perdoar, também no campo filológico. De mais a mais sei que houve, da parte dos quinhentistas escritores e impressores, numerosas tentativas de nacionalizar os latinismos e grecismos. Nas duas edições primeiras de «Os Lusíadas» (de 1572) temos p. ex. hemispherio, emipherio, emisperio e emisferio; nymphas, nimphas, nimfas e ninfas; phantasia e fantasia (com fantesca); estilo, estillo e estilo; e de mistura com despautérios como occeano, formas bem aportuguesadas como linfa, vítima, diáfano, sulfúreo, grandíloco.
Hesitavam.
Os pósteros é que deveriam ter escolhido e entronizado as grafias mais sensatas, como fizeram em Espanha e na Itália.
Como ainda não o fizeram, façámo-lo nós. - Mais vale tarde do que nunca.

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