Para quem estiver interessado em saber mais sobre a razão deste e de outros acordos ortográficos (e reformas) aconselho a ler com atenção.
Entrevista a Carolina Michaëlis de Vasconcelos de 1911
(Republicada nos «Cadernos do Centenário» de O Primeiro de Janeiro, em 1968).
I - Existe ou não, ortografia portuguesa, oficial e uniforme?
A Em Portugal não há, nem houve nunca, ortografia oficial, uniforme. Só
ortografias variadas, mais ou menos sensatamente regradas pelo costume e exemplo
de bons autores, ou mais ou menos inçadas de erros, contradições, dislates,
caprichos e idiossincrasias pessoais. Esse estado anormal foi tomando proporções
de verdadeira calamidade nos últimos decénios do século passado; desde que
romanistas que ex-ofício estudaram cientìficamente a literatura e a
língua nacional - glotólogos, gramáticos, lexicógrafos, etimologistas como F. A.
Coelho, J. Leite de Vasconcelos, o já falecido Vasconcelos Abreu, Aniceto dos
Reis Gonçalves Viana, Júlio Moreira, Epifânio Dias, Cândido de Figueiredo -
começaram a expurgar a escrita de defeitos inveterados, regularizando-a e
simplificando-a pouco a pouco metòdicamente, processo que levou uns a adoptar
algumas das emendas e inovações, rejeitando aquelas que menos lhes agradavam, e
outros a complicar a sua, cada vez mais, por espírito de oposição ou tendências
conservadoras, com exajeros pretensamente etimológicos. Houve e há escritores
que na mesma estrofe de um poema, na mesma página de um romance nos apresentam
formas híbridas e contraditórias, meio reformadas ou inteiramente reformadas,
como mytho e rythmo; melancólico e eccho;
aflito e fructo; próximo e proprio; sería e
Maria; Quiz e mês; allucinante e captivante;
outominal e insónia. Uma confusão magna!
II - Seria conveniente que a ortografia fosse oficialmente regularizada e simplificada?
Conveniente e urgente, tanto do ponto de vista científico, como no estético, e,
sobretudo, no pedagógico.
Num país atrasadíssimo quanto à instrução e educação,
em que quatro milhões estão à espera dos benefícios da luz espiritual, o que
importa é facilitar o ensino da leitura e escrita; acabar com todas as
complicações desnecessárias; eliminar todos os artifícios eruditos; abreviar a
aprendizagem de sorte que os professores ganhem tempo para realmente
fertilizarem as almas com noções sólidas de saber e as boas doutrinas cívicas da
solidariedade social, do pacifismo e do altruísmo. Por que (será preciso
lembrá-lo?) o ensino elementar da leitura escrita não é fim, mas apenas
meio, indispensável para o desenvolvimento da faculdade de pensar,
raciocinar, julgar, protestar, e emendar o que encontramos de imperfeito e
obnóxio no nosso caminho: faculdades, sem as quais não pode haver verdadeira
liberdade.
Quanto aos estrangeiros, também lucrarão com reforma. A
enfadonha anarquia ortográfica tornou até hoje pouco apetecido o estudo do
português, já em si muito mais espinhoso do que o das outras línguas
neo-latinas, por causa das subtilezas da sua pronúncia e da sua morfologia. De
ciência certa sei, por quanto tempo a falta de regras seguras sobre recta
pronúncia e escrita correcta, e a falta de boas edições de textos impediu por
completo, ou embaraçou inùtilmente, a publicação de manuscritos importantes e de
estudos, aliás notáveis, relativos à admirável língua de Camões.
Com relação à estética e à ética, bastará perguntar, se
a ordem, a disciplina é, ou não, mais bela do que a desordem e a anarquia? A
coerência preferível à incoerência? A simplicidade superior a enfeites e
arrebiques supérfluos? Se é verdade, ou não, que as deficiência gráficas do
português lhe darão ares de inculto; em especial, se o compararmos com outras
línguas? A ortografia francesa é incomparàvelmente mais complicada e mais
defeituosa do que a portuguesa; mas pelo menos está (como a inglesa e a alemã)
frisada com rigor; tem sistema pelo qual todos se regulam. A castelhana e a
italiana, pelo contrário. - Os idiomas, portanto, que são mais ìntimamente
aparentados com o português - possuem há mais de um século ortografias
excelentes, simplificadas racionalmente pelas respectivas Academias.
Equiparar a nossa a essas duas, seguindo mutatis
mutandis os mesmos princípios que nelas deram óptimo resultado, regularizar
e simplificar, baseando-nos na história cientìficamente estudada do vocabulário
nacional - eis o que convém fazer
III - Qual é a causa das anomalias da escrita portuguesa?
Causadora das anomalias que deturpam a escrita portuguesa é (se abstrairmos das
dificuldades resultantes da complicada fonologia da língua, com seus sons
nasais, ditongos puros e nasais, cinco ee, quatro aa, três
oo de valor ora aberto, ora fechado, ora reduzido) a tendência
etimológica, erudita, artificial, conservadora - em oposição aberta à natural,
popular e progressiva tendência fonética das verdadeiras ortografias, como
transcrição dos sons realmente proferidos na pronúncia normal das classes
cultas.
Tentarei explicar em poucas palavras de onde provêm,
històricamente.
A principal fonte da língua portuguesa é o latim, como
todos sabem. Não o latim literário. O latim vulgar, tal como pronunciavam no
território lusitano já alijado de certas demasias atávicas ou aristocráticas. Os
numerosíssimos vocábulos que constituíam o léxico primitivo dos Luso-Romanos
passaram por evoluções sucessivas que, quanto à forma, as modificaram mais ou
menos segundo as leis naturais, uma das quais é a do mínimo esforço. Sobrepostas
a esta larga e espessa camada popular, que constitui a parte principal,
verdadeiramente nacional e modelar da língua, há (além de vocábulos de origem
germânica e arábica, etc.) diversas camadas de palavras, tiradas pouco a pouco
por especialistas do léxico literário greco-latino, em pelo menos três épocas
diversas: Idade Média, época do Renascimento, e tempos modernos. Termos
técnicos, científicos, e termos poéticos altissonantes; mas também termos
triviais; novos, em muitíssimos casos, e em outros casos idênticos aos que já
existiam alterados no núcleo popular, p. ex. palácio ao par de
paço; legítimo ao par de lídimo. Palavras divergentes, na
terminologia dos romanistas.
Nas palavras populares, herdadas de origem evolutiva,
houve sempre e há em regra, ortografia fonética, quer elas se afastem
sensìvelmente dos padrões originais, quer não se afastem nada ou quase nada em
virtude da sua estrutura singela (rosa, casa; mês a mês).
Escreve-se o que se profere, tão perfeita ou imperfeitamente como o admitem os
vinte e cinco caracteres do alfabeto também herdado.
Nos primeiros monumentos artísticos da literatura - nas
cantigas de amor e de escarnho dos trovadores (de 1200 a 1350) em que mal há
vocábulos eruditos (apenas alguns provençalismos e galeguismos) não há, por isso
mesmo (no códice membranacio da Ajuda) senão grafias fonéticas como ome,
oge, aver, sono, dano, santo, pronto,
meter, falar, calar, nacer, crecer,
decer. Quanto a u medial há todavia oscilações; provàvelmente por
haver oscilações na pronúncia.
Das palavras eruditas, extraídas do dicionário latino e
do helénico, não alteradas na boca do vulgo quanto ao sentido, nem quanto à
forma, ou apenas levemente aportuguesadas, de índole conservativa, essas
entraram, quase estacionárias, com todas as letras dos originais na prosa de
notários, eclesiásticos, arqueólogos, historiadores e especialistas (do tempo de
D. Dinis em diante), e também nos versos dos poetas áulicos do século XV. Mesmo
com letras que em Portugal nunca tiveram função primitivamente sua, e com grupos
de letras que não se encontram em dicções herdadas, a não ser abusivamente.
Nelas é que figuram os sinais exóticos yy th ph rh
gh; muitos hh; os grupos mn gm gn ct
pt cç pç güe gëe; pp bb
gg cq, e outras consoantes dobradas, supérfluas. Mesmo em
bastantes das que desceram ao domínio do vulgo, sendo assimiladas às de feições
populares na pronúncia (p. ex. pela eliminação de c antes de consoante e
ensurdecimento das vogais átonas), a grafia conservou-se inalterada, p. ex. em
víctima, victória, tractar, práctica,
satisfação.
A par desses termos, de introdução artificial mas
antiga, há muitos outros mais modernos, de significado mais erudito, em que p.
ex. a pronúncia alfabética dos grupos de consoantes, não toleradas no património
verdadeiramente nacional, se tornou facultativa, v. g. em significado,
consignar, diccionário, occidente, espectáculo,
respectivo, técnica, facto, secção, equidade,
equivaler, bilingue. E finalmente há uma camada de vocábulos, de
introdução recente e sentido científico tão restrito que nunca serão familiares
à maioria dos que falam, em que por hora é praxe geral proferir todas as letras,
consoantes e vogais, com os seus valores alfabéticos: aerhemotoxia,
glyptognosia, etc. etc.
Pois bem: o costume de encontrar símbolos exóticos
(ph rh y) e letras supérfluas em dicções relativas a ciências e artes,
empregadas de preferência pelos mais ilustres da nação, levou todos quantos
tinham pretensões de cultos - e onde está escritor que as não tenha? - não só a
conservar cuidadosamente esses vestígios de origens nobres, mas também a
reintroduzir símbolos exóticos e letras supérfluas em dições vulgares, de onde
sempre estiveram banidos, durante séculos de vida literária. P. ex. em
somno, damno; signal, dicto, fructo;
escripto; sancto, pronpto, poncto; descer;
nascer; sysne, lagryma; golphinho; exgottar;
exforço; sexto; extrangeiro; crescer, nascer;
sciente.
Em algumas palavras alteraram mesmo a pronúncia,
segundo o tipo latino; ora sensatamente como em menos, menor,
feno, pena (em vez de mêos, mêor, fêo,
pêa), magno (para evitar confusão com mano), ora
inùtilmente como em digno.
Por falsa analogia letras mudas entraram mesmo em
palavras onde elas não têm razão alguma de figurar, v. g. em thesoura
(por causa de thesouro?), ensignar (por causa do alatinado
signal); occeano, como se tivesse relações de parentesco com
occaso, occidente, eivando-se assim a parte vernácula do idioma
com formas fantasiosas, como theudo, mauthendo, Santhiago e
a parte alatinada e helenizada com barbarismos, como ethymologia,
lythographia, photografia, physyognomia,
philosophia; philharmonica, dymnastia, dymnastica
(por causa de gymnastica).
Caturrices como cognoscer por conhecer,
quomo por como, ochlos por olhos, hacte por
até, ipso por isso - obras do benemérito antiquário André
de Resende - não vingaram felizmente. Não tão pouco a proposta de se substituir
é aberto por æ!
Tudo isso - repito - com o pretexto de conservar
vestígios visíveis de ilustres prosápias, ou conforme é uso dizer «para sugerir
etimologias». Por mera ostentação, por pedantismo, por espírito de reacção; ou
em virtude da preocupação mórbida que a queda de um h, a substituição de
um y por i possa dissimular a origem de uma palavra!
Como se um escasso milhão de portugueses que lê e
escreve fosse capaz de analisar, interpretar e historiar as evoluções e origens
de homem, hoje, hontem (!), bocca, melhor do que as
de ora, onra, falar, filosofia.
Quanto a erros e irregularidades provêem em grande
parte, evidentemente, da pouca sabedoria filológica dos próprios autores, que
não tinham (até há muito pouco) meios de se informar ràpidamente. Em parte da
ignorância dos escribas. Os medievais estavam costumados a transladar e redigir
documentos em latim bárbaro; e os do tempo dos humanistas a copiar epístolas
cesaronianas, poemas vergilianos, em estilo clássico.
Depois da invensão civilizadora de Guttenberg
muitos arcaísmos e pedantismos provieram da intervenção de oficiais de
tipografias e de correctores, que julgando-se habilitados, não podendo alterar a
bel prazer o estilo dos textos que compunham e corrigiam, lhes retocavam pelo
menos a ortografia. Nem sempre exemplar, já o disse, e piamente o
creio.
Nem todas as imprensas dispunham de artistas
habilitados, e os preceitos da Mesa Censória não permitiam (salvo erro) que o
próprio autor lesse provas e alterasse os dizeres de manuscritos
aprovados.
Lembro que logo nos alvores da arte de imprimir, o
conde de Alcoutim advertia o impressor Valentim de Morávia que as obras saídas
dos seus prelos seriam melhores se não confiasse tanto nos seus oficiais -
sentença que confirmará quem leu na edição príncipe a História de
Vespasiano ou qualquer outra das obras, que devemos a esse
impressor.
Quanto à introdução de vocábulos correctamente
alatinados e helenizados, tenho-a, em si, em conta de obra meritória; obra de
poetas e escritores exímios, impulsionados pelo louvável empenho de enriquecer e
enobrecer a língua e altear o nível da cultura pátria com elementos da
civilização da Antiguidade. Só Luís de Camões contribuiu com mais de um cento.
Com respeito à grafia, lamento, isso, sim, que não se resolvessem logo,
decididamente, a tirar aos neologismos que patrocinavam as caudas roçagantes e
enfeitos excessivos, assemelhando-os, o mais possível, aos vocábulos antigos,
verdadeiramente nacionais. Ainda assim, não vou tão longe como Gonçalves Viana
que condena em absoluto as grafias eruditas deles como mera superstição e mero
alarde de cultismo, porque me lembro de que ocupando um lugar à parte na
economia da linguagem, não era de estranhar que lho quisessem dar também quanto
à escrita. E compreender equivale a perdoar, também no campo
filológico. De mais a mais sei que houve, da parte dos quinhentistas escritores
e impressores, numerosas tentativas de nacionalizar os latinismos e grecismos.
Nas duas edições primeiras de «Os Lusíadas» (de 1572) temos p. ex.
hemispherio, emipherio, emisperio e emisferio;
nymphas, nimphas, nimfas e ninfas; phantasia
e fantasia (com fantesca); estilo, estillo e
estilo; e de mistura com despautérios como occeano, formas bem
aportuguesadas como linfa, vítima, diáfano,
sulfúreo, grandíloco.
Hesitavam.
Os pósteros é que deveriam ter escolhido e entronizado
as grafias mais sensatas, como fizeram em Espanha e na Itália.
Como ainda não o fizeram, façámo-lo nós. - Mais vale
tarde do que nunca.
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