«Imaginem esta palavra phase, escripta assim: fase. Não nos parece uma palavra, parece-nos um esqueleto (...) Affligimo-nos extraordinariamente, quando pensamos que haveriamos de ser obrigados a escrever assim!»
Alexandre Fontes, A Questão Orthographica, Lisboa, 1910, p. 9.

domingo, fevereiro 26, 2012

Mais um artigo interessante

Retirado do Ciberdúvidas

A impunidade do desacordo ortográfico *

João Tiago Silveira **


Ainda a querela à volta da suspensão do Acordo Ortográfico, no Centro Cultural de Belém, neste artigo de um dos membros do Governo português que legislou a entrada em vigor da nova grafia nos organismos oficiais do país. Artigo publicado no semanário Expresso de 25/02/2012.


O recém-nomeado presidente do Centro Cultural de Belém (fundação criada pelo Estado) instruiu os seus serviços para não aplicarem o Acordo Ortográfico e retirarem os respetivos conversores dos computadores. Já se sabia que Graça Moura era um convicto opositor do Acordo Ortográfico. Está no seu direito. O que não se sabia é que um presidente de uma fundação criada pelo Estado, nomeado pelo Governo, pode desrespeitar impunemente as opções legítimas e democráticas do Estado português.
Tenta-se disfarçar as convicções pessoais numa amálgama de argumentação jurídica apressada. Mas que fique claro: é evidente que o Acordo já entrou em vigor, tanto na ordem jurídica internacional, em 1 de janeiro de 2007, como na ordem jurídica portuguesa, desde 13 de maio de 2009 (basta ler o Aviso n.º 255/2010, de 13/9). Em conformidade, o Estado definiu um calendário para a sua introdução, prevendo um período de adaptação de 6 anos. Trata-se de um período destinado a progredir na aplicação do Acordo e não a regredir, como sucede com a decisão do presidente do CCB. Em qualquer caso, nos termos desse calendário, todas as entidades administrativas devem aplicar a nova grafia desde 1 de janeiro de 2012.
Não aceito, nem como cidadão nem como contribuinte, que o presidente de uma instituição criada por entidades públicas e nomeado pelo Estado possa gerir essa instituição de acordo com as suas convicções privadas. Uma coisa é não querer escrever segundo o Acordo, outra é proibir uma instituição de raiz pública de cumprir o que foi legitimamente determinado pelo Governo e está publicado em Diário da República.
Ainda mais incompreensível é o silêncio do Governo. Quis o primeiro-ministro disfarçar a despromoção da Cultura na orgânica do Governo com a garantia de que essa área ficaria na sua dependência direta. Pois essa opção tem consequências: Passos Coelho responde pelas nomeações na área da Cultura (e Vasco Graça Moura é uma delas) e tem especiais responsabilidades sobre a política da língua e o que se passa no CCB. Perante isto, não pode ficar-se pelas frases habituais, cheias de “evidentementes”. Impõem-se algumas perguntas: vai o Governo revogar a Resolução de Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25/1, dispensando as entidades públicas de aplicar o Acordo Ortográfico? Vai alterar o que está a ser feito nas escolas, onde já se ensina segundo as novas regras? Vai republicar os Diários da República já publicados conforme o Acordo Ortográfico? E vai revogar a nomeação de Graça Moura (aliás escrita nos termos do novo Acordo) ou vai reescrevê-la à moda antiga? Bem sei que o tema do Acordo Ortográfico suscita ânimos, paixões e ódios. Mas não se podem admitir atitudes terroristas de quem não concorda, nem hesitações de quem tem responsabilidades.
Acresce que o consenso político em torno do Acordo não pode disfarçar a responsabilidade dos governos do PSD: foi com Cavaco Silva e Santana Lopes que, em 1990, o Acordo foi estabelecido (a conselho técnico de reputados linguistas à época). E foi com um Governo PSD/CDS (estava também Bagão Félix no Governo…) que se negociou o Protocolo que facilitou a sua entrada em vigor. Por muito que alguns estejam viciados em responsabilizar o Governo socialista por todos os males do mundo, não é possível falsear a história.
Mas há nesta questão, além de tudo o mais, um problema de autoridade democrática do Governo. Um precedente como este pode levar-nos muito longe: um republicano convicto, nomeado para um cargo público, poderá invocar as suas convicções privadas para desrespeitar a inqualificável eliminação do feriado de 5 de outubro na entidade que dirige?

* Artigo publicado no semanário Expresso de 25 de fevereiro de 2012 :: 25/02/2012

Sobre o Autor

** Docente universitário português, ex-secretário de Estado da Justiça e da Presidência do Conselho de Ministros

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