«Imaginem esta palavra phase, escripta assim: fase. Não nos parece uma palavra, parece-nos um esqueleto (...) Affligimo-nos extraordinariamente, quando pensamos que haveriamos de ser obrigados a escrever assim!»
Alexandre Fontes, A Questão Orthographica, Lisboa, 1910, p. 9.

terça-feira, fevereiro 28, 2012

aderência e adesão

Com as greves, vêm os erros!
São várias as vezes que oiço e leio a palavra «aderência» em vez de «adesão».

«Aderência à Greve Geral!» no blogue Comunistas Portugueses,  acedido a 28/02/12.

«Como já é tradição, ontem à noite deu-se uma guerra de números relativamente à aderência à greve. A disparidade variava entre 14% e 80%.» no speaker's corner, acedido a 28/02/12.

«Greve no centro hospitalar regista 16% de aderência. Publicado em 2004-08-06 » JN online, acedido a 28/02/12.

«Foi patética a sua reacção à greve como é patética a sua reacção aos ... mediaticamente exemplificada com a grande aderência à greve»  no blogue Abrasivo, acedido a 28/02/12.

Deixo-vos com um artigo de Maria Regina Rocha, publicado no Ciberdúvidas,  sobre as diferenças entre estes dois vocábulos.

As palavras adesão e aderência são muitas vezes consideradas sinónimas, pois ambas exprimem a ideia de ligação. Utilizam-se, no entanto, em contextos diferentes.
Por exemplo, deverá dizer-se «a adesão do público português aos filmes», e não “a aderência do público aos filmes”.
O termo adesão é utilizado normalmente em relação a pessoas, enquanto a palavra aderência se utiliza em relação a coisas, a substâncias.
A palavra adesão tem o significado de «união», «junção», «acordo», «aprovação», «manifestação de apoio ou de solidariedade», «ligação ideológica», podendo ser utilizada em expressões deste género: a adesão a um tratado, a adesão a uma doutrina ou a um princípio, a adesão a um modo de vida, a uma ideia, a um partido político, a adesão a uma moda, a adesão aos filmes, ao teatro, à literatura. No conceito de adesão está presente o pensamento, a vontade, o sentimento de quem adere, de quem aprova, de quem escolhe.
A palavra aderência designa a «qualidade do que é aderente», o «acto de aderir», a «ligação de superfícies», a «ligação de uma substância a outra», podendo ser utilizada em expressões deste género: a aderência dos pneus à estrada, a aderência da argila ao arado, a aderência da sujidade à pele, a aderência do pó aos móveis. A palavra aderência utiliza-se, pois, quando se pretende designar alguma substância ou matéria que está aderente a algo, ou referir uma ligação concreta, material, normalmente de pouca solidez ou que se pode vir a separar.
Estou a referir os significados comuns dos termos, exceptuando os dos contextos científicos e técnicos da Biologia, Medicina e Física, em que estes termos têm significados específicos.
Estas palavras são provenientes de duas palavras latinas formadas a partir do mesmo verbo latino, o verbo ‘adhaerere’, que significava aderir. Em português, aderência começou por significar “favor”, “favorecimento”, “valimento”, “protecção”, sendo no século XIX por vezes utilizada no sentido de “apego a algo” como a crenças, ideologias, seitas, mas passou a usar-se relativamente às ligações materiais, às ligações de substâncias. Os dicionários actuais, aliás, registam esse valor antigo do termo, porque presente ainda em textos modernos, como os de Almeida Garrett.
Quanto à palavra adesão, ela sempre designou uma ligação forte ou uma vinculação a ideias, princípios, causas.
1. Aderência provém de ‘adhaerentia-’ (que significava «ligação», «aderência»), originária do verbo ‘adhaereo’, do particípio presente, ‘adhaerens’, ‘adhaerentis’. E o verbo ‘adhaereo’ latino significa «estar ligado a, ficar fixo em, ficar aderente a»; «estar contíguo»; «parar, não avançar». Assim, esse particípio presente significaria «estando ligado a», «aderente». Daí a pouca firmeza da ligação denominada de aderência.
2. Adesão provém do latim ‘adhaesione-’. Trata-se do acusativo do substantivo ‘adhaesio’, ‘adhaesionis’, também formado do verbo ‘adhaereo’, mas do particípio passado ‘adhaesus’, que significava «aderido», «aquilo que aderiu, que se fixou». A adesão é, assim, originariamente, mais sólida e persistente que a aderência.

Concluindo, deverá, então, dizer-se, por exemplo, «a aderência da tinta à madeira», mas «a adesão de alguém a uma causa».


 

Dias da semana

Por vezes, ouço pessoas a dizer que, com o AO de 90, os dias da semana passarão a escrever-se com minúscula. Ficam algo desconfiadas quando lhes digo que não. Já eram escritos com minúscula.


Em nota de rodapé, conto-vos que houve alguém que me disse que já sabia que eram escritos com minúscula, exceto domingo, pois era dia santo. Perguntei-lhe, então, o que diriam os mulçumanos e os adventistas do sétimo dia??? 


Outras notas:
a) não perdem o hífen (segunda-feira, terça-feira...);
b) Quando iniciam a frase, usa-se a maiúscula.

Exercícios interativos

Descobri estes exercícios interativos muito interessantes. Clique sobre a imagem para abrir a hiperligação.

domingo, fevereiro 26, 2012

Pergunta do dia

— Antes da mudança ortográfica, escrevia-se «acta». E agora?

R: Escreve-se «ata» porque o «c» não se pronuncia.

Mais um artigo interessante

Retirado do Ciberdúvidas

A impunidade do desacordo ortográfico *

João Tiago Silveira **


Ainda a querela à volta da suspensão do Acordo Ortográfico, no Centro Cultural de Belém, neste artigo de um dos membros do Governo português que legislou a entrada em vigor da nova grafia nos organismos oficiais do país. Artigo publicado no semanário Expresso de 25/02/2012.


O recém-nomeado presidente do Centro Cultural de Belém (fundação criada pelo Estado) instruiu os seus serviços para não aplicarem o Acordo Ortográfico e retirarem os respetivos conversores dos computadores. Já se sabia que Graça Moura era um convicto opositor do Acordo Ortográfico. Está no seu direito. O que não se sabia é que um presidente de uma fundação criada pelo Estado, nomeado pelo Governo, pode desrespeitar impunemente as opções legítimas e democráticas do Estado português.
Tenta-se disfarçar as convicções pessoais numa amálgama de argumentação jurídica apressada. Mas que fique claro: é evidente que o Acordo já entrou em vigor, tanto na ordem jurídica internacional, em 1 de janeiro de 2007, como na ordem jurídica portuguesa, desde 13 de maio de 2009 (basta ler o Aviso n.º 255/2010, de 13/9). Em conformidade, o Estado definiu um calendário para a sua introdução, prevendo um período de adaptação de 6 anos. Trata-se de um período destinado a progredir na aplicação do Acordo e não a regredir, como sucede com a decisão do presidente do CCB. Em qualquer caso, nos termos desse calendário, todas as entidades administrativas devem aplicar a nova grafia desde 1 de janeiro de 2012.
Não aceito, nem como cidadão nem como contribuinte, que o presidente de uma instituição criada por entidades públicas e nomeado pelo Estado possa gerir essa instituição de acordo com as suas convicções privadas. Uma coisa é não querer escrever segundo o Acordo, outra é proibir uma instituição de raiz pública de cumprir o que foi legitimamente determinado pelo Governo e está publicado em Diário da República.
Ainda mais incompreensível é o silêncio do Governo. Quis o primeiro-ministro disfarçar a despromoção da Cultura na orgânica do Governo com a garantia de que essa área ficaria na sua dependência direta. Pois essa opção tem consequências: Passos Coelho responde pelas nomeações na área da Cultura (e Vasco Graça Moura é uma delas) e tem especiais responsabilidades sobre a política da língua e o que se passa no CCB. Perante isto, não pode ficar-se pelas frases habituais, cheias de “evidentementes”. Impõem-se algumas perguntas: vai o Governo revogar a Resolução de Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25/1, dispensando as entidades públicas de aplicar o Acordo Ortográfico? Vai alterar o que está a ser feito nas escolas, onde já se ensina segundo as novas regras? Vai republicar os Diários da República já publicados conforme o Acordo Ortográfico? E vai revogar a nomeação de Graça Moura (aliás escrita nos termos do novo Acordo) ou vai reescrevê-la à moda antiga? Bem sei que o tema do Acordo Ortográfico suscita ânimos, paixões e ódios. Mas não se podem admitir atitudes terroristas de quem não concorda, nem hesitações de quem tem responsabilidades.
Acresce que o consenso político em torno do Acordo não pode disfarçar a responsabilidade dos governos do PSD: foi com Cavaco Silva e Santana Lopes que, em 1990, o Acordo foi estabelecido (a conselho técnico de reputados linguistas à época). E foi com um Governo PSD/CDS (estava também Bagão Félix no Governo…) que se negociou o Protocolo que facilitou a sua entrada em vigor. Por muito que alguns estejam viciados em responsabilizar o Governo socialista por todos os males do mundo, não é possível falsear a história.
Mas há nesta questão, além de tudo o mais, um problema de autoridade democrática do Governo. Um precedente como este pode levar-nos muito longe: um republicano convicto, nomeado para um cargo público, poderá invocar as suas convicções privadas para desrespeitar a inqualificável eliminação do feriado de 5 de outubro na entidade que dirige?

* Artigo publicado no semanário Expresso de 25 de fevereiro de 2012 :: 25/02/2012

Sobre o Autor

** Docente universitário português, ex-secretário de Estado da Justiça e da Presidência do Conselho de Ministros

segunda-feira, fevereiro 06, 2012

Acordo Ortográfico em vigor

Artigo do Ciberdúvidas

Acordo Ortográfico em vigor em Portugal
desde 13 de Maio de 2009

acordoA data da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 1990) em Portugal suscitou muitas dúvidas ao longo do corrente ano. O Aviso n.º 255/2010 de 13 de Setembro, do Ministério dos Negócios Estrangeiros português, vem esclarecer a situação: o novo acordo começou a ser aplicado em 13 de Maio de 2009, em resultado do depósito do instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, conforme previa o n.º 2 do art.º 2 da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008 e o n.º 2 do art.º 2 do Decreto do Presidente da República n.º 52/2008.
Esta data marca também o princípio de um período de transição de seis anos, em que coexistem em Portugal o Acordo de 1945 e o AO 1990. Findo esse prazo, a ortografia constante de actos, normas, orientações ou documentos provenientes de entidades públicas, de bens culturais, de manuais escolares e outros recursos didáctico-pedagógicos, com valor oficial ou legalmente sujeitos a reconhecimento, validação ou certificação deverá conformar-se às disposições do novo acordo (consultar legislação já referida).
Assinale-se que a adopção da nova ortografia pelo sistema de ensino português está prevista para o ano lectivo de 2011/2012. O mesmo deverá acontecer nos próximos tempos nos textos publicados no Diário da República, que, neste momento, ainda conserva a ortografia antiga.

domingo, fevereiro 05, 2012

Para quem estiver interessado em saber mais sobre a razão deste e de outros acordos ortográficos (e reformas) aconselho a ler com atenção.
Entrevista a Carolina Michaëlis de Vasconcelos de 1911 (Republicada nos «Cadernos do Centenário» de O Primeiro de Janeiro, em 1968).
I - Existe ou não, ortografia portuguesa, oficial e uniforme?
A Em Portugal não há, nem houve nunca, ortografia oficial, uniforme. Só ortografias variadas, mais ou menos sensatamente regradas pelo costume e exemplo de bons autores, ou mais ou menos inçadas de erros, contradições, dislates, caprichos e idiossincrasias pessoais. Esse estado anormal foi tomando proporções de verdadeira calamidade nos últimos decénios do século passado; desde que romanistas que ex-ofício estudaram cientìficamente a literatura e a língua nacional - glotólogos, gramáticos, lexicógrafos, etimologistas como F. A. Coelho, J. Leite de Vasconcelos, o já falecido Vasconcelos Abreu, Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, Júlio Moreira, Epifânio Dias, Cândido de Figueiredo - começaram a expurgar a escrita de defeitos inveterados, regularizando-a e simplificando-a pouco a pouco metòdicamente, processo que levou uns a adoptar algumas das emendas e inovações, rejeitando aquelas que menos lhes agradavam, e outros a complicar a sua, cada vez mais, por espírito de oposição ou tendências conservadoras, com exajeros pretensamente etimológicos. Houve e há escritores que na mesma estrofe de um poema, na mesma página de um romance nos apresentam formas híbridas e contraditórias, meio reformadas ou inteiramente reformadas, como mytho e rythmo; melancólico e eccho; aflito e fructo; próximo e proprio; sería e Maria; Quiz e mês; allucinante e captivante; outominal e insónia. Uma confusão magna!
II - Seria conveniente que a ortografia fosse oficialmente regularizada e simplificada?
  Conveniente e urgente, tanto do ponto de vista científico, como no estético, e, sobretudo, no pedagógico.
Num país atrasadíssimo quanto à instrução e educação, em que quatro milhões estão à espera dos benefícios da luz espiritual, o que importa é facilitar o ensino da leitura e escrita; acabar com todas as complicações desnecessárias; eliminar todos os artifícios eruditos; abreviar a aprendizagem de sorte que os professores ganhem tempo para realmente fertilizarem as almas com noções sólidas de saber e as boas doutrinas cívicas da solidariedade social, do pacifismo e do altruísmo. Por que (será preciso lembrá-lo?) o ensino elementar da leitura escrita não é fim, mas apenas meio, indispensável para o desenvolvimento da faculdade de pensar, raciocinar, julgar, protestar, e emendar o que encontramos de imperfeito e obnóxio no nosso caminho: faculdades, sem as quais não pode haver verdadeira liberdade.

Quanto aos estrangeiros, também lucrarão com reforma. A enfadonha anarquia ortográfica tornou até hoje pouco apetecido o estudo do português, já em si muito mais espinhoso do que o das outras línguas neo-latinas, por causa das subtilezas da sua pronúncia e da sua morfologia. De ciência certa sei, por quanto tempo a falta de regras seguras sobre recta pronúncia e escrita correcta, e a falta de boas edições de textos impediu por completo, ou embaraçou inùtilmente, a publicação de manuscritos importantes e de estudos, aliás notáveis, relativos à admirável língua de Camões.

Com relação à estética e à ética, bastará perguntar, se a ordem, a disciplina é, ou não, mais bela do que a desordem e a anarquia? A coerência preferível à incoerência? A simplicidade superior a enfeites e arrebiques supérfluos? Se é verdade, ou não, que as deficiência gráficas do português lhe darão ares de inculto; em especial, se o compararmos com outras línguas? A ortografia francesa é incomparàvelmente mais complicada e mais defeituosa do que a portuguesa; mas pelo menos está (como a inglesa e a alemã) frisada com rigor; tem sistema pelo qual todos se regulam. A castelhana e a italiana, pelo contrário. - Os idiomas, portanto, que são mais ìntimamente aparentados com o português - possuem há mais de um século ortografias excelentes, simplificadas racionalmente pelas respectivas Academias.

Equiparar a nossa a essas duas, seguindo mutatis mutandis os mesmos princípios que nelas deram óptimo resultado, regularizar e simplificar, baseando-nos na história cientìficamente estudada do vocabulário nacional - eis o que convém fazer

III - Qual é a causa das anomalias da escrita portuguesa?
Causadora das anomalias que deturpam a escrita portuguesa é (se abstrairmos das dificuldades resultantes da complicada fonologia da língua, com seus sons nasais, ditongos puros e nasais, cinco ee, quatro aa, três oo de valor ora aberto, ora fechado, ora reduzido) a tendência etimológica, erudita, artificial, conservadora - em oposição aberta à natural, popular e progressiva tendência fonética das verdadeiras ortografias, como transcrição dos sons realmente proferidos na pronúncia normal das classes cultas.
Tentarei explicar em poucas palavras de onde provêm, històricamente.

A principal fonte da língua portuguesa é o latim, como todos sabem. Não o latim literário. O latim vulgar, tal como pronunciavam no território lusitano já alijado de certas demasias atávicas ou aristocráticas. Os numerosíssimos vocábulos que constituíam o léxico primitivo dos Luso-Romanos passaram por evoluções sucessivas que, quanto à forma, as modificaram mais ou menos segundo as leis naturais, uma das quais é a do mínimo esforço. Sobrepostas a esta larga e espessa camada popular, que constitui a parte principal, verdadeiramente nacional e modelar da língua, há (além de vocábulos de origem germânica e arábica, etc.) diversas camadas de palavras, tiradas pouco a pouco por especialistas do léxico literário greco-latino, em pelo menos três épocas diversas: Idade Média, época do Renascimento, e tempos modernos. Termos técnicos, científicos, e termos poéticos altissonantes; mas também termos triviais; novos, em muitíssimos casos, e em outros casos idênticos aos que já existiam alterados no núcleo popular, p. ex. palácio ao par de paço; legítimo ao par de lídimo. Palavras divergentes, na terminologia dos romanistas.

Nas palavras populares, herdadas de origem evolutiva, houve sempre e há em regra, ortografia fonética, quer elas se afastem sensìvelmente dos padrões originais, quer não se afastem nada ou quase nada em virtude da sua estrutura singela (rosa, casa; mês a mês). Escreve-se o que se profere, tão perfeita ou imperfeitamente como o admitem os vinte e cinco caracteres do alfabeto também herdado.

Nos primeiros monumentos artísticos da literatura - nas cantigas de amor e de escarnho dos trovadores (de 1200 a 1350) em que mal há vocábulos eruditos (apenas alguns provençalismos e galeguismos) não há, por isso mesmo (no códice membranacio da Ajuda) senão grafias fonéticas como ome, oge, aver, sono, dano, santo, pronto, meter, falar, calar, nacer, crecer, decer. Quanto a u medial há todavia oscilações; provàvelmente por haver oscilações na pronúncia.

Das palavras eruditas, extraídas do dicionário latino e do helénico, não alteradas na boca do vulgo quanto ao sentido, nem quanto à forma, ou apenas levemente aportuguesadas, de índole conservativa, essas entraram, quase estacionárias, com todas as letras dos originais na prosa de notários, eclesiásticos, arqueólogos, historiadores e especialistas (do tempo de D. Dinis em diante), e também nos versos dos poetas áulicos do século XV. Mesmo com letras que em Portugal nunca tiveram função primitivamente sua, e com grupos de letras que não se encontram em dicções herdadas, a não ser abusivamente. Nelas é que figuram os sinais exóticos yy th ph rh gh; muitos hh; os grupos mn gm gn ct pt güe gëe; pp bb gg cq, e outras consoantes dobradas, supérfluas. Mesmo em bastantes das que desceram ao domínio do vulgo, sendo assimiladas às de feições populares na pronúncia (p. ex. pela eliminação de c antes de consoante e ensurdecimento das vogais átonas), a grafia conservou-se inalterada, p. ex. em víctima, victória, tractar, práctica, satisfação.

A par desses termos, de introdução artificial mas antiga, há muitos outros mais modernos, de significado mais erudito, em que p. ex. a pronúncia alfabética dos grupos de consoantes, não toleradas no património verdadeiramente nacional, se tornou facultativa, v. g. em significado, consignar, diccionário, occidente, espectáculo, respectivo, técnica, facto, secção, equidade, equivaler, bilingue. E finalmente há uma camada de vocábulos, de introdução recente e sentido científico tão restrito que nunca serão familiares à maioria dos que falam, em que por hora é praxe geral proferir todas as letras, consoantes e vogais, com os seus valores alfabéticos: aerhemotoxia, glyptognosia, etc. etc.

Pois bem: o costume de encontrar símbolos exóticos (ph rh y) e letras supérfluas em dicções relativas a ciências e artes, empregadas de preferência pelos mais ilustres da nação, levou todos quantos tinham pretensões de cultos - e onde está escritor que as não tenha? - não só a conservar cuidadosamente esses vestígios de origens nobres, mas também a reintroduzir símbolos exóticos e letras supérfluas em dições vulgares, de onde sempre estiveram banidos, durante séculos de vida literária. P. ex. em somno, damno; signal, dicto, fructo; escripto; sancto, pronpto, poncto; descer; nascer; sysne, lagryma; golphinho; exgottar; exforço; sexto; extrangeiro; crescer, nascer; sciente.

Em algumas palavras alteraram mesmo a pronúncia, segundo o tipo latino; ora sensatamente como em menos, menor, feno, pena (em vez de mêos, mêor, fêo, pêa), magno (para evitar confusão com mano), ora inùtilmente como em digno.

Por falsa analogia letras mudas entraram mesmo em palavras onde elas não têm razão alguma de figurar, v. g. em thesoura (por causa de thesouro?), ensignar (por causa do alatinado signal); occeano, como se tivesse relações de parentesco com occaso, occidente, eivando-se assim a parte vernácula do idioma com formas fantasiosas, como theudo, mauthendo, Santhiago e a parte alatinada e helenizada com barbarismos, como ethymologia, lythographia, photografia, physyognomia, philosophia; philharmonica, dymnastia, dymnastica (por causa de gymnastica).

Caturrices como cognoscer por conhecer, quomo por como, ochlos por olhos, hacte por até, ipso por isso - obras do benemérito antiquário André de Resende - não vingaram felizmente. Não tão pouco a proposta de se substituir é aberto por æ!

Tudo isso - repito - com o pretexto de conservar vestígios visíveis de ilustres prosápias, ou conforme é uso dizer «para sugerir etimologias». Por mera ostentação, por pedantismo, por espírito de reacção; ou em virtude da preocupação mórbida que a queda de um h, a substituição de um y por i possa dissimular a origem de uma palavra!

Como se um escasso milhão de portugueses que lê e escreve fosse capaz de analisar, interpretar e historiar as evoluções e origens de homem, hoje, hontem (!), bocca, melhor do que as de ora, onra, falar, filosofia.

Quanto a erros e irregularidades provêem em grande parte, evidentemente, da pouca sabedoria filológica dos próprios autores, que não tinham (até há muito pouco) meios de se informar ràpidamente. Em parte da ignorância dos escribas. Os medievais estavam costumados a transladar e redigir documentos em latim bárbaro; e os do tempo dos humanistas a copiar epístolas cesaronianas, poemas vergilianos, em estilo clássico.

Depois da invensão civilizadora de Guttenberg muitos arcaísmos e pedantismos provieram da intervenção de oficiais de tipografias e de correctores, que julgando-se habilitados, não podendo alterar a bel prazer o estilo dos textos que compunham e corrigiam, lhes retocavam pelo menos a ortografia. Nem sempre exemplar, já o disse, e piamente o creio.

Nem todas as imprensas dispunham de artistas habilitados, e os preceitos da Mesa Censória não permitiam (salvo erro) que o próprio autor lesse provas e alterasse os dizeres de manuscritos aprovados.

Lembro que logo nos alvores da arte de imprimir, o conde de Alcoutim advertia o impressor Valentim de Morávia que as obras saídas dos seus prelos seriam melhores se não confiasse tanto nos seus oficiais - sentença que confirmará quem leu na edição príncipe a História de Vespasiano ou qualquer outra das obras, que devemos a esse impressor.

Quanto à introdução de vocábulos correctamente alatinados e helenizados, tenho-a, em si, em conta de obra meritória; obra de poetas e escritores exímios, impulsionados pelo louvável empenho de enriquecer e enobrecer a língua e altear o nível da cultura pátria com elementos da civilização da Antiguidade. Só Luís de Camões contribuiu com mais de um cento. Com respeito à grafia, lamento, isso, sim, que não se resolvessem logo, decididamente, a tirar aos neologismos que patrocinavam as caudas roçagantes e enfeitos excessivos, assemelhando-os, o mais possível, aos vocábulos antigos, verdadeiramente nacionais. Ainda assim, não vou tão longe como Gonçalves Viana que condena em absoluto as grafias eruditas deles como mera superstição e mero alarde de cultismo, porque me lembro de que ocupando um lugar à parte na economia da linguagem, não era de estranhar que lho quisessem dar também quanto à escrita. E compreender equivale a perdoar, também no campo filológico. De mais a mais sei que houve, da parte dos quinhentistas escritores e impressores, numerosas tentativas de nacionalizar os latinismos e grecismos. Nas duas edições primeiras de «Os Lusíadas» (de 1572) temos p. ex. hemispherio, emipherio, emisperio e emisferio; nymphas, nimphas, nimfas e ninfas; phantasia e fantasia (com fantesca); estilo, estillo e estilo; e de mistura com despautérios como occeano, formas bem aportuguesadas como linfa, vítima, diáfano, sulfúreo, grandíloco.
Hesitavam.
Os pósteros é que deveriam ter escolhido e entronizado as grafias mais sensatas, como fizeram em Espanha e na Itália.
Como ainda não o fizeram, façámo-lo nós. - Mais vale tarde do que nunca.